sexta-feira

Saramago



Há quem reclame a extensão dos parágrafos, que para muitos torna os textos difíceis de ler. É verdade que não se pode ler Saramago de um fôlego, assim como seu texto não se presta à leitura dita dinâmica, porque se perderiam as frestas por onde destilam uma certa impertinência e as idiossincrasias que acabaram lhe valendo um cartão amarelo-avermelhado em sua pátria.
Nada disso consegue distrair o leitor interessado no talento explícito, no pensamento livre e brilhante que Saramago imprimiu a sua obra. Há ainda uma sensibilidade finamente poética, um estilo inconfundível, a música da linguagem e a energia que corre sob o texto como um fio condutor, nítido e corajoso. Que não impede a ironia e o humor sutil com os quais ele liga as peças de suas fábulas e dos relatos insuflados de ceticismo.
Esses elementos se destacam sobretudo nos romances críticos aos pressupostos da religião, como O Evangelho segundo Jesus Cristo e Caim,  em que ele recria o Novo e o Antigo Testamento, respectivamente, recriando seus personagens principais; ou como A Caverna, em que mira certeiro o capitalismo destrutivo. Há romances cativantes, como Todos os nomes e O Conto da Ilha Desconhecida, sem falar em seu irretocável Ensaio sobre a Cegueira.
Mas Saramago é daqueles escritores que não morrem nunca. Mesmo de corpo ausente, cremado e feito em cinzas, sua voz está impressa em muitos livros, muitos textos avulsos, entrevistas e lembranças responsáveis por sua presença e disponível para os leitores de muitas gerações. Que bom.

Aqui, uma boa resenha sobre o lançamento da biografia do escritor, em janeiro deste ano, comentando alguns de seus traços pessoais e sua bela carreira.


__________________________
Vuvuzelas

Os doentes que se cuidem antes, porque no dia do jogo nenhum médico é obrigado a estar presente em seu consultório, ambulatório ou qualquer outro -ório a que os pacientes possam recorrer. Idem aos imprevidentes, que esqueceram de comprar o rango dos dias de jogo do Brasil; aos pobres trabalhadores oprimidos por algum serviço do qual não podem se ausentar, e por isso terão que ir a pé, sem reclamar, para o local de trabalho, caso suas conduções não estejam disponíveis. E mais: não esqueçam a vuvuzela, prova indispensável de patriotismo nesses dias (ia dizendo sinistros, mil perdões, foi só um lapso).


sábado

Promessa cumprida

Decidiram passar a lua de mel no Japão.
Do pequeno terraço de mesas brancas viam as escamas da lua flutuando na água. (A lua, que não tem mar, um dia teve.) Duas taças esguias faziam a festa para dois sozinhos, donos da Terra e meio altos, achando a vida um sonho encantado e o amor o lugar mais seguro do universo. Nem desconfiavam que dali a meia hora um tsunami levaria as taças e o resto.
Nesse momento, cumpriam a promessa romântica, feita durante a viagem, de se perderem numa noite que nunca ia se acabar.

Postagem coletiva do Fio


 Uma carta de amor


Equidistantes, quilômetros às dezenas de milhares, o que isso quer dizer? Saber não é seguro. Ao lado do que se sabe, muita coisa pode acontecer, como as cores que fogem ao registro da imagem ou um fenômeno natural inesperado. Sabia tanto, até te encontrar e isso mudar tudo, absolutamente tudo em minha vida. É sempre o inesperado. É também o inesperado que temo reencontrar, agora com outra cara, adverso, inquietante. Porque só está claro o que ouço ao telefone, o que vejo em fotos e leio nas cartas. Tudo o mais é obscuro, desconhecido, estranho. Não é preciso mentir para enganar alguém. Pode-se enganar por tantos motivos, até por amor, para não fazer com que o outro sofra, para não perder alguma coisa ou o próprio amor. E há os riscos, as dúvidas, as incertezas que se acumulam, se ajeitam e só se movem e se desfazem quando são desmentidas. Como desmentir o que não se vê? Enquanto durar essa distância, não sabemos nada, nem o que já existiu, o que foi provado, o vivido. O invisível está durando demais. Até quando, amor?

terça-feira

Gal

Mulher escrevendo




Escrever era só a sobra. O que restava depois que o dia ia se cumprindo e ela cumpria seu papel – a casa bem cuidada, as garotas na escola, o almoço tão bem temperado, a roupa limpa e guardada, não fossem os vizinhos – ou pior, o marido – chamá-la de relaxada. Tinha uma reputação a cuidar. Dias ainda havia para as compras, estantes e tanta coisa por limpar e arrumar. E sempre, sempre os eternos ciscos, migalhas nas bancadas da copa, poeira aqui e ali, a gordura mal limpa no fogão. Tinha empregada, sim, mas cada dia ela queria fazer menos e sair mais cedo. E ao fim do dia, os momentos de ócio necessários para azeitar as ideias e deixar fluir certa energia semicósmica – porque em parte vinha era de dentro. Nem sabia se era mesmo energia: era mais concreto, como liberar alguma coisa física, um miniparto. E porque nada ainda estava dito, era então preciso colher palavras, limpar a terra, o sangue, a aura estranha e revirá-las sobre o teclado e plantá-las no monitor entre as outras, em sequência de alguma lógica, às vezes nem isso. Sentir e pesar seu efeito, seu tempo de validade, porque às vezes ficavam murchas, pobres, indigestas ou indigentes de sentido, caso em que nada resolviam de sua necessidade: as palavras são como as cores para o pintor. Há um efeito final a levar em conta que, esse sim, vem de dentro, e é preciso ser fiel a ele. Então deixava passar um tempo e voltava a elas, as palavras. Assim podia ter uma ideia mais clara do que estariam fazendo ali, corrigir algum rumo sem destino como um piloto em vôo. O voo era sempre meio cego. Havia tardes e noites em que as palavras pareciam fluir tão facilmente, e ela enchia páginas e páginas seguidas, contente, realizada, achando o tempo um sonho. Mas não durava muito e a dor secreta dos dias voltava a se insinuar. A dor era sempre, não cessaria nunca e se expressava de um jeito surdo, devorando as entrelinhas. Chegava de leve, depois aumentava de intensidade e afinal causava um mal-estar que a obrigava a se curvar como quem carrega um peso maior que suas forças. Então às vezes apareciam poemas no monitor.