sexta-feira

Ao vento



Lembrava Búzios de outro tempo, do tempo com ele. Daquele ponto em que só se via o mar e o céu. O mar e seus rochedos coroados de espuma e a imensa placidez ondulando de leve. No toca-fitas música renascentista e o vento. O vento era um clima, dava vida à música, levava e trazia, falava entre os cabelos dela. Lembrava sempre da paixão daquele tempo. Da irreverência, da corrosão e do lamento, do langor e do jogo de provocações a que a ansiedade obrigava e o prazer movimentava. Das tardes em que o vento açulava ao sol, conspirava e sustentava os dois, recriados no jipe de capota arriada, como jovens deuses pagãos.
Lembrava o reencontro em Búzios, logo no início, quando ele, já um escritor de êxito, chamara os amigos para uns dias na praia, comemorando seu terceiro romance, o mais famoso de todos. Quando parecia que tudo estava pronto, que a vida seria para sempre a visão daquele mar sem fim, o caminhar entre amarantas e buganvílias, quando ele também parecia haver atingido alguma estabilidade, e lhe mostrava gavetas e prateleiras de originais, trabalhos começados, pesquisas, pastas coloridas amontoadas nas estantes e programas de lançamento, e ela respirava com mais confiança e se rejubilava de sua euforia.
Pensou então no brilho avermelhado de Marte naquelas noites, em como parecia quase escorrer sobre suas cabeças. Ainda não conheciam a guerra em que se envolveriam. No horizonte, a lua atirava ao mar suas escamas e alagava o mundo com o misterioso desvario de uma luz quase sufocante. Reviu o pequeno terraço de mesas brancas, as duas taças esguias que comemoravam, ele sussurrava, o coração da festa, os dois a sós, donos de toda a beleza da terra e meio altos por causa da bebida gelada e dourada, o riso silencioso e o beijo no qual haviam se perdido noite afora... Na varanda da pousada, o café da manhã, rindo juntos do grupo que tinham deixado para fugir sem avisar a ninguém. Escalada pela encosta até a Prainha, mergulhos fortuitos na tarde morna, idílios no banquinho de madeira carcomida olhando os barcos no ancoradouro dos Ossos.
E no entanto não ficaria com ele em Búzios. Ainda não se concederia viver seu sonho. Despedira-se como se representasse um papel para disfarçar o próprio desconcerto, tentando não ver o espanto com que a olhava, mudo. Porque na verdade doía, doía tanto, tanto, e tinham feito tantos projetos para outros dias, tantos outros dias que ela transformava em projetos vagos para algum futuro incerto. Entrou no carro e logo se obrigou a virar o rosto para não ver os olhos dele que a interrogavam ao vento. E por pouco não batia na traseira de um caminhão enguiçado na beira da estrada, logo na saída da cidade. Tão toldados de lágrimas estavam seus olhos.

De literatura


Já dizia Paul Eluard que poeta é mais quem inspira que quem está inspirado. Disso se trata, porque a poesia é uma visão do universo e uma maneira de descobri-lo com olhos de menino. É beleza estética que nos penetra, sim. Porém é também uma ética, pela qual os rostos das pessoas não são somente olhos, nariz e boca. São mapas de geografias interiores que revelam plenitudes, abismos e histórias. A poesia é a eternidade. É um estalido do silêncio.
Antonio Jr., em entrevista a Vera Rabêlo.

quarta-feira

Colagem



Longe daqui há incêndios de ouro
mas a colagem de minhas lembranças
preferiu sempre a paz das águas.

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Sobre Jakob von Gunten, de Robert Walser, enfim traduzido e publicado no Brasil

 O trecho a seguir aparece em  Dica Blooks, Livros, por Toinho Castro, publicado em 19.04.2011

"Dos livros que a gente não leu: Jakob von Gunten, de Robert Walser"

"O livro traz, em primeira pessoa, em forma de diário, a história desse jovem, aparentemente nobre, que decide largar tudo e servir as pessoas. Para isso ingressa numa instituição e lá seus conflitos, seu destino, se desenrola. Naturalmente, como eu não li ainda o livro, não posso falar muito dele. O que me chama em direção a ele são todas as referências que fui acumulando ao longo do tempo. Sobretudo o elogio de outros grandes mestres da literatura, gente que li e admiro e que enxergar em Walser. Uma frase de W. G. Sebald (Os Anéis de Saturno) foi a que mais me apontou na direção do livro: Walser é um visionário das pequenas coisas.
Num mundo onde tudo quer ser grandioso, épico, esse olhar sobre o mínimo, sobre esses componentes às vezes quase invísiveis de nossas rotinas, nos traz à luz. As pequenas coisas trazem revelações e quando alguém, um escritor como Welser, se debrça sobre elas, é importante dar atenção. A publicação de  Jakob von Gunten abre essa oportunidade. Convido todos que já leram Kafka, Robert Musil, W. G. Sebald e tantos outros, a me acompanharem na leitura da obra de Robert Walser."

segunda-feira

A paz é uma rua de mão dupla



A violência não brota do nada. E não tem só uma ou duas causas nem caras. Não pode ser reduzida a fórmulas, como se tende a fazer nas situações limite. Do mesmo jeito esse objeto de desejo de tanta gente que se chama paz. Assim como violência gera mais violência, uma cara cordial, um olhar amigável e um sorriso desarmado convocam a paz no interlocutor. Pode ser difícil em alguns casos; mas na maioria das vezes não só é possível como muito agradável. E faz bem à saúde.
As discussões sobre o assunto terminam muitas vezes num charco estéril de narcisismo. Argumentos irredutíveis que perdem de vista a questão concreta não servem para nada.
As discordâncias conceituais têm que existir e devem ser debatidas. Mas se vierem pela voz da prepotência e da vaidade, perdem sua razão de ser e servem apenas para engrossar o arsenal das farpas, muito útil a quem pretende aproveitar a crise para se projetar ou – pior ainda – tirar vantagem dela. Será que isso não é manifestação de violência?
No imaginário coletivo as represálias e a vingança parecem ter-se tornado recursos legítimos contra quem, com ou sem intenção, cria obstáculos ao interesse de alguém. A primeira atitude das pessoas é o revide, que vai das palavras à agressão física. Refletir um pouco nessas horas é um santo remédio para não pagar mico. Apesar das aparências, quem mantém o autocontrole numa situação de confronto merece o respeito de todos.
Violência tem graus, mas não escalas que a tornem mensurável. É contagiosa, mas não existe medicamento eficaz contra ela, a não ser que se consiga uma mudança íntima, pessoal, pela qual alguém se disponha a ceder um pouco, ou ao menos mostrar-se aberto a isso, em nome de um entendimento melhor com o próximo.
O mundo não se divide em pessoas boas e más como se já estivesse tudo resolvido. Nada está resolvido, nem vai estar nunca. Sempre há o que melhorar em nossa vida. Mas isso só acontece quando estamos convencidos de que a paz resulta de uma atitude alerta para compreender, avaliar com lucidez e livre da cegueira da ira, tão frequente nestes dias de brutalidade. Se a mudança não começar dentro de cada um, podemos dizer adeus à paz e à esperança de viver melhor.

quarta-feira

Os professores continuam em branco




Qualquer ramo de saber demora anos e décadas para conseguir avançar em suas conquistas. Um pesquisador e um estudioso têm que ser antes de tudo pessoas pacientes, de uma persistência acima da média. Há dados intermediários, dos quais dependem outros e outros. Há dados enganosos, que fazem perder tempo ou invalidam conquistas anteriores. Por isso é preciso estar sempre em dia com as novidades. Em especial, se nosso trabalho é passar adiante um programa, incluindo essas novidades.
 Dedicação por si só, no entanto, não inclui outros aspectos dessa maratona da inteligência. É preciso antes de tudo que haja prazer no que se faz. Em qualquer área da atividade humana, a busca da perfeição envolve motivos como satisfação e bem-estar que justifiquem as horas de trabalho, muitas vezes bem mais extensas do que as que constam na CLT. 
 Pena que, no caso de nossos professores, não haja recompensa à altura. Parece até que há mais prejuízo do que recompensa. Não será essa uma das causas básicas de o ensino no Brasil estar tão desacreditado pelo mundo?

segunda-feira

Tudo para dar certo


Foto Diogo Bras.

O anúncio dizia bem claramente: experiência mínima de um ano. Tinha até mais. Graduação completa, inglês fluente. Boa aparência. Boa aparência? O espelho dizia que sim. Tinha sim. Discreta, até classuda, que é que eles iam querer mais?
Entrou no ônibus com o moral elevado, salto alto, cabelos pra cima, nariz e tudo mais de direito devidamente arrebitado. Pontualidade, atenção. Discreto perfume natural, nada de cheiros bulímicos. Nem vinte minutos viajando, tão perto, que sorte. O corredor entre as divisórias, a luz fria, o vidro das baias vazias. Ninguém ainda, muito cedo. O segurança apontou a cadeira junto à bancada do computador mais próximo e fez um sinal para que aguardasse. Olhou para cima, para os lados, para o chão. Ambiente moderno, clean, cinza e aço, móveis claros, azul mortiço nos estofados. As estantes embutidas, janelas enormes, o ar já frio demais àquela hora.

Em sua cabeça começava uma espécie de pingue-pongue sem mesa e sem rede, em que a bolinha zanzava pra todos os lados quase sem tocar as raquetes. Endireitou-se bem na cadeira, não fosse agora perder o controle da situação. Aliás, que situação que nada, aquilo devia ser um teste. Imaginou que alguém estaria espiando, procurou câmeras pelos cantos, nas luminárias do teto, nas esquadrias. Algum desses vidros espelhados que as delegacias têm para que a vítima reconheça seu algoz sem ser vista. Olhou de novo em volta, dessa vez à procura do homem de terno azul escuro. Que tinha sumido, se esvaído, na certa lá na porta da rua, na portaria, à espera de outros candidatos. Candidatas. Serviço pra mulher, só deviam aparecer...

Entra na sala uma mocinha com cara de caipira, ela ainda vê a mão de punho branco do segurança. A mocinha dá uns passos e se dirige à cadeira da outra ponta da bancada. Fica de lado para ela, que dá de ombros. É bonitinha, tem um jeito meigo. Mas vai ver nunca trabalhou.

Depois da mocinha, entraram duas mulheres maduras, louras de farmácia, saias muito curtas para o estado das pernas, pneus marcados dentro das blusas muito justas. Daí em diante os candidatos foram chegando aos magotes, e ela era apenas um olhar crítico examinando os rapazes, jovens ou bobos demais; a moça de enormes argolas e tatuagem na nuca (ainda não sabe que não se vai procurar emprego com tatuagem aparecendo, coitada); a senhora de cabelos grisalhos, cara de aposentada, talvez muito idosa para ser aceita. Não se sentia ameaçada por aquela gente. Muito menos pela mulher de mechas descoloridas e unhas pretas, enormes garras e gestos vulgares, equilibrando as ancas sobre saltos quinze.

Continuou sentada, costas retas, ombros para baixo, só os olhos em movimento. Cruzara as pernas e balançava a ponta do pé num movimento discreto e ritmado. Uma ligeira náusea se instalava em seu plexo e ela suspirou. Agora entrava um homem, um cara tão alto que foi preciso esperar um pouco para conseguir ver seu rosto. As pessoas se retraíram, fez-se um silêncio mais acentuado quando ele passou. Imaginou que devia ser algum figurão perdido por ali. Não tinha cara de candidato a emprego, muito menos de secretário. Mas teve que reavaliar o bonitão depois que viu em sua mão bem desenhada um envelope com uma etiqueta de letras nítidas: Hélio M. Siqueira – Curriculum Vitae.
Além de vistoso, o rapaz era comunicativo, e foi logo puxando assunto com uns e outros. Fazia comentários, reclamava da demora, ouvia atentamente o que cada um dizia e acabou por conquistar a simpatia de todos.
Com isso o tempo pareceu passar mais depressa. Ainda bem, porque chamaram os candidatos pela ordem alfabética, e Zilah – era esse o nome dela – saiu do prédio horas depois. Os cabelos tinham perdido a linha, os pés doíam e o perfume há muito tinha sumido do corpo e da roupa. O estômago agora se ocupava de consumir a si mesmo, e a pose estava desfeita. Arrastou-se até sua casa e pôs para esquentar o feijão da véspera e o arroz que preparara de manhã, antes de sair para a entrevista. Fritou dois ovos e sentou para almoçar.
Enquanto satisfazia a fome, ia pensando. Um homem como aquele devia aparecer na vida de uma mulher como uma promessa, uma paixão à primeira vista. Mas não. Tinha que aparecer para competir, para tirar dela a chance que já considerava ganha, com tudo pra dar certo. Lavou o prato e os talheres sentindo-se um lixo. Escovou os dentes, tirou o sutiã e deitou no sofá da sala para olhar um pouco a tevê, mas adormeceu.
Sonhou que Hélio M. Siqueira era uma espécie de observador encarregado de passar à chefia uma primeira impressão sobre os candidatos. Não havia câmeras nem vidro espelhado de delegacia, mas Hélio dava conta desse serviço. No sonho, ele a indicava como a melhor figura e a melhor atitude dentre os pretendentes. Falava de sua aparência cuidada, dos modos polidos e da postura correta que mantivera todo o tempo. Num desses redutos obscuros que os sonhos engendram, Hélio e sua mãe eram a mesma pessoa, usando as mesmas palavras que tinha ouvido tantas vezes nas conversas da adolescência. Isso facilitava enormemente as coisas, porque além de conquistar o cargo, sentia crescer a atração e a confiança naquele homem ambivalente, que no momento indicado voltou a ser somente Hélio M. Siqueira e olhava para ela com olhos de gula.
Acordou lânguida e úmida, com o telefone tocando.

sexta-feira

Criação e busca da perfeição

Do livro Criatividade Quântica, de Amit Goswami, p. 181:

       "Quando Nikos Kazantsakis tentou começar a escrever Zorba, o Grego, expressou assim sua frustração com a forma:

Eu escrevia, e riscava tudo. Não conseguia encontrar palavras adequadas. Algumas vezes, elas eram baças e sem alma;  algumas indecentemente extravagantes, outras vezes abstratas e etéreas, sem um corpo cálido. Eu sabia o que planejava dizer quando me colocava diante do papel, mas as palavras indômitas me arrastavam para outro lugar... Percebi que ainda não chegara a hora, que a metamorfose secreta dentro da semente ainda não fora contemplada, e assim, parei (citado em Malville, 1975, p.81).

     Kazantsakis teve de parar de escrever até ter novos microinsights e o subsequente jogo emaranhado entre ideia e forma.
Em resumo, o processo criativo é o encontro entre o ego e o self quântico, revelando-se como o jogo alternado entre informação e comunicação, transpiração e inspiração, forma e ideia (Figura 11.2). O versos de Rabindranath Tagore (1976, p. 34), a seguir, resumem todos esses aspectos do encontro criativo com perfeição milimétrica:

        A melodia procura prender-se no ritmo,
        enquanto o ritmo flui de volta para a melodia.
        A ideia procura seu corpo na forma
        e a forma sua liberdade na ideia.
        O infinito procura o toque do finito
        e o finito sua liberdade no infinito.
        Que drama é esse entre criação e destruição –
        essa oscilação infindável entre ideia e forma?
        A servidão luta para obter a liberdade
        e a liberdade procura repouso na servidão."


 De Zorba, o filme



Outros vídeos de Zorba.



quarta-feira

Sazonal

Henri Matisse.


Minha memória floresce
jasmins brancos e frios
em pleno outono.

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Aproveitando a onda saudosista

segunda-feira

Efeito colateral


Assim que conseguiu juntar o suficiente para uma vida sem maiores cuidados, tratou de procurar uma casa acolhedora em um lugar aprazível, não muito distante do Rio, onde pudessem, ele e a mulher, desfrutar a paz da natureza e uma vida sem complicações. Em pouco mais de três meses tinham essa casa: ficava entre a serra e o mar no estado do Rio, à beira de um lago escuro e plácido, rodeada por um bosque, um jardim que já encontraram florido e um pequeno pomar. Pensaram nos amigos, fins de semana reconfortantes e até férias que poderiam lhes oferecer, agradando a eles e animando sua nova vida.
Logo que se mudaram ficava horas a contemplar o lago, carpas, trutas e cardumes de peixinhos que ia admirar da margem onde se instalava em uma cadeira preguiçosa com um livro nas mãos. Descobriu nesse período que existe uma variedade infinita de insetos de formas e cores interessantíssimas – alguns dos quais incomodam muito, é verdade, e precisam de repelentes – o que resolvia a situação em parte, porque a mulher sofria de alergia ao cheiro desses produtos e espirrava sem parar depois de usar um deles.
A intenção era não deixar passar mais de vinte dias sem uma ida ao Rio para assistir a uma peça de teatro, ir a um cinema ou visitar alguém, além das exposições de pintura que ela curtia. — É engraçado, disse a mulher, numa manhã, duas semanas depois de se mudarem para a nova casa. Você às vezes não tem a impressão de estar em outro mundo? — Eu não, isola! – ele respondeu, rindo.
Mas era verdade. Talvez porque não viam os amigos de sempre, ou o telefone só tivesse tocado quatro ou cinco vezes durante aquelas duas semanas. Ou porque o silêncio tão denso absorvia qualquer ruído e era como um rumor surdo e permanente a soar em suas cabeças.
Era setembro e já esquentava, mas ainda fazia um pouco de frio durante as madrugadas. Haviam-se passado pouco mais de dois meses na nova casa. Nas primeiras duas ou três semanas, ele acordava refeito, contente e disposto, louvando o sono reparador da noite. Mas ultimamente dera para acordar às três, quatro horas e não conseguia adormecer de novo. Perder o sono naquele paraíso de silêncio era uma heresia e o contrariava seriamente. Andava meio desconfiado, por mais paradoxal que parecesse, de que a falta da agitação começava a perturbar seu sossego. O isolamento e a sensação de estar sendo esquecido começavam a estragar os sonhos de uma vida calma e livre naquela casa, idealizada durante tantos anos e construída como um antídoto para os males da civilização predatória em que tinham estado mergulhados nos últimos trinta e poucos anos. Quando o sono afinal o vencia de novo, o céu já ia ficando meio iluminado daquele tom rosado-ouro do outro dia.
Acordou numa dessas manhãs às dez e pouco. A mulher o esperava na copa e sentada a sua frente parecia pensativa. — Que foi? — Bem, nem sei como te dizer isso... Mas acho que precisamos de umas férias. Que é que você acha de umas semanas de barulho, poluição e perigo?
Em vez de estranhar, ele sorriu com ar de cumplicidade. E logo depois do almoço daquele dia estavam os dois a caminho do Rio.

sexta-feira

Lembra de Susan Hayward?



E agora isso. Um dia inteiro vazio, um dia à escolha, um dia sem dono. Um espaço insólito de luz sem rumo. Havia serviço de casa a fazer, serviço inevitável, mas sem muita importância e, a não ser que não o fizesse, ninguém saberia de nada.
Nada o quê?
Ficou parada no meio da manhã sem saber para onde ir. Não sairia como sempre, depois de um banho apressado e caprichado, bem arrumada e perfumada, rumo à sala antiga, feia e familiar, à espera de uma reforma com que ninguém mais contava. Não olharia aquelas caras do dia-a-dia, os sorrisos-de-corredor, não ouviria as vozes conhecidas dizendo tudo bem?, não sentiria o sono de depois do almoço nem a fome do antes, a caminho do restaurante de cadeiras azuis. Não tremeria um pouco a cada parada inesperada do elevador entre dois andares, não subiria seu tédio entre as paredes de aço mal limpas.
Olhou em volta do quarto ainda desarrumado, mexendo-se com desconforto. Era um alívio e uma dorzinha machucada, amassada num fundo sobre o estômago. Fora de todas as previsões de vinte anos atrás, aliás vinte e três e três meses. Fora da garatuja traçada em sua carteira de trabalho com aquele retrato com cara de Susan Hayward (quem se lembraria mais de Susan Hayward) e da tinta preta que arrussara com o tempo. Nada a ver com o bigode imenso do primeiro chefe.
O carrossel do tempo, coisa mais besta, o carrossel da memória, o carrossel de imagens coloridas que não tinha muita relação direta com as sensações daquele tempo que agora se manifestava em outro tempo como uma foto que não reproduz bem a imagem que se guarda na memória. Não tinha domínio sobre nenhum dos dois tempos, mas só sabia disso agora. O de antes ficava hipoteticamente dentro do outro. Mas quem podia garantir alguma coisa?
As imagens antigas parecem agora planas, em duas dimensões, e correm como numa tela sem fim. As imagens antigas parecem figuras de papelão emendadas umas nas outras, correndo como um filme acelerado. Mas são ao mesmo tempo aquelas de antes, os traços apagados e misturados, um ou outro olhar surgindo e desaparecendo no meio de tudo. Uma ou outra voz que volta em pedaços de fala sem articulação. A estatura de alguém, a camisa xadrez de um colega, o ar entediado de outro. Um riso solto, a escada iluminada pelo óculo de vitral (lá em cima havia o melhor banheiro do prédio velho) e o pequeno labirinto ao lado da sala do chefe. “Nada impede que eu ponha você à disposição do pessoal” – ele dissera para impressioná-la no primeiro dia, arrastando uma voz envolvente e áspera como se tivessem pregado pontas de metal no fundo de uma almofada de veludo preto. A seguir passara o braço esquerdo por trás da cabeça para coçar a orelha direita, um artifício que usava para exibir autoridade e uma certa majestade de xeque beduíno.
Ela nunca havia trabalhado numa empresa como aquela, uma editora, e tudo lhe soava justificável e digno de respeito. Mesmo a chamada da colega à direita para que diminuísse o ritmo de trabalho não pareceu mais que uma correção devida à sua inexperiência. Ela não dissera “assim não vai sair bem”, mas “ninguém trabalha nesse ritmo aqui”, e sua caneta parou no ar imediatamente, tomada de temor e boa vontade. Questão de ética, com certeza, quem era ela para discutir. Podia estar prejudicando colegas menos capazes, mais lentas no trabalho, e isso na certa não seria recomendável nem a tornaria mais querida.
Um vento enigmático movia as folhas dos galhos mais próximos para a frente e para trás, sincronicamente, sem que se definisse uma direção. O que chegava agora vinha de um corredor semiobscuro e em sua memória um pouco frio. Mas não havia vento no corredor. As cortinas da janela do quarto flutuaram alguns instantes como um par de asas translúcidas. Em sua sala havia muitas mesas e muito papel. Era um mistério para ela que as pilhas nunca diminuíssem, mas acabara se acostumando; fazia parte da natureza das coisas que aquela papelada amarelasse sobre as escrivaninhas enquanto moças cultas e agradáveis trocavam impressões e críticas menos ou mais maldosas, lembrando conversas por sua vez mais antigas, conversas que se refestelam em cadeiras confortáveis no aconchego de olhares cúmplices. Uma cumplicidade fugaz, naquele caso das colegas de trabalho, mas assim mesmo cumplicidade e como tal parte das boas lembranças. 
 
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Um lado das pessoas pode crescer além do previsível

Mesmo um louco pode ser uma pessoa mansa e dócil. Mesmo um louco pode vibrar de solidariedade, simpatia ou amor a alguém. Não raro, sabemos de casos assim. A diferença é que entre os ditos "normais" esses sentimentos são menos obsessivos, menos sofridos, talvez. 
No entanto há loucos - que classificamos como psicopatas - capazes de atrocidades inomináveis. Não costumam ser muito numerosos entre seus pares, felizmente. Mas às vezes respondem, ou nem respondem, por um massacre, ou se tornam assassinos em série. São talvez o pior tipo de ser humano sobre a face da Terra. E o pior de tudo, é que não podemos adivinhar quem é ou não psicopata, quem se tornaria um monstro de repente. Há indícios, mas são menos precisos e infalíveis do que seria preciso para prever por exemplo o que aconteceu na escola de Realengo, nesta semana.

quarta-feira

Fim do dia

Imagem da internet sem menção de autor.

Jorge Luís a encontrou diante da tevê, os cabelos molhados, envolvida num roupão branco, comendo uma panqueca de frango.
— Oba, saudou.
Cheirava a suor, um cheiro acre que ele mesmo sentia e o impedia de se aproximar.
— Também quero uma.
Ela esticou o dedo mínimo na direção da cozinha, sem desviar os olhos do programa.
— Então, foi tudo bem?
Marlene fez um sinal positivo com o polegar da mão livre. Estava rodeada de almofadas e um dos pés aparecia, moreno e rosado, de unhas nacaradas. Jorge Luís sumiu na direção do banheiro e pouco depois ela ouviu a água caindo do chuveiro. Não demorou. Antes de ir à cozinha ele voltou à sala e desligou a televisão. Tomou a mulher nos braços e se encaminhou com ela para o quarto. Ela não protestou: a entrevista estava mesmo terminada, sua fome satisfeita, a vida ganha, e agora subia de seu ventre a calidez que prenunciava as grandes noites.

(Trecho de Como se livrar de Glória.)

segunda-feira

Mon coeur balance



Imagem Andy Warhol.


Depois de ler o texto da portuguesa Inês Pedrosa, em que ela se declara uma fã ardorosa e defensora de Bethânia na polêmica do blog e do $$$, repensei o assunto. Não dá pra ficar indignada como acontece diante dos desvios de verba de merenda escolar, da descarada roubalheira praticada por nossos políticos de ficha suja, ora resgatados por uma justiça caolha. Mas também não dá pra concordar plenamente com uma quantia tão alta, embora a justificativa de que se trata de uma grana provinda de renúncia fiscal. Também acho que a moça tem condições de conseguir um patrocínio da iniciativa privada, que talvez chegasse até a superar o R$1.300.000,00 em questão. Afinal, Bethânia é uma artista de valor, reconhecida e querida do público.
Por outro lado, acredito que a divulgação de boa poesia e um trabalho sério nesse sentido, como reza a proposta, merecem uma recompensa, especialmente vinda do órgão encarregado desse tipo de trabalho, como é o MinC. Até porque outros artistas têm recorrido a tais verbas sem que ninguém saia gritando contra eles. O Brasil bem que precisa que alguém se proponha a divulgar obras que quase sempre ficam restritas a uma elite beneficiada por diferenças sociais e econômicas que deixam a gente bem envergonhada.
De tudo isso, cheguei à conclusão, nem tão brilhante, de que a divulgação é necessária e benéfica ao público em geral, embora o custo devesse ser menos chamativo. Mas agora fazer o quê? A verba foi concedida, o projeto está rolando. Se a polêmica continuar ou se agravar, é bem possível que essa questão seja repensada. Só lamentaria bastante que o projeto fosse por água a baixo, como quase sempre acontece nesses casos.



sexta-feira

Besouro


O poema na folha do caderno
o vento o leva ao chão
e fica brincando com ele
manso manso
como um gatinho
brinca com um besouro
até que o besouro morre
do brinquedo.
O vento vai embora
o poema jaz
e indiferente
o gato
toma contente
seu leite na tigela.
  



Olha a Flip aí minha gente!

Prêmio Off Flip – regulamento

http://www.premio-offflip.net/regulamento.pdf