sexta-feira

Visão



Imagem Veronika Pinke.
O dia se esvaiu
e ainda resisto
presa ao batente da porta
por onde vislumbrei
o paraíso.

segunda-feira

O bom sentido de sair do armário

A meu ver, o papel – e atrativo – principal da assombração é que ela manifesta aquilo que está desde sempre dentro de cada um de nós, mas vive preso, escondido no porão, trancado a sete chaves porque, uma vez liberado, faria de nós seres indesejáveis, incapazes de conviver em sociedade e politicamente incorretíssimos. A figura do estranho, da pessoa ou coisa que provoca horror ou medo, não seria tão ambígua e atraente se não correspondesse a alguma coisa com que todos estamos secretamente familiarizados – embora pensemos sempre nessa coisa como uma entidade com existência própria. Assombração não é feita para assustar (embora em geral assuste, por uma espécie de efeito colateral). O estranho existe para nos fazer viver a vida de modo mais completo, já que viver é muito mais do que pagar contas no banco, namorar ou ir ao cinema.

quarta-feira

Ponto de fuga


Dona Elisa ouvia vagos rumores que, de mistura com as lembranças anacrônicas e os fragmentos de sonhos que povoavam seu sono entrecortado, faziam as vezes de um tropel de cavalos, gritos guerreiros e sussurros de alguém muito chegado a ela, o falecido talvez, ou o neto que um dia fora seu preferido e que ela, ninguém sabia por quê, imaginava em viagem pelo Oriente. Súbito o ruído cessou em seus ouvidos e um silêncio pleno se estabeleceu em sua mente. Ao mesmo tempo, as lembranças clareavam nítidas, e ela percebeu que aquele era o dia do aniversário de Vivinha, uma mulata que setenta anos antes fora uma espécie de pau-pra-toda-obra em sua casa, no bairro dos Jardins. Reviu as figuras de um livro de histórias chamado “A galinha ruiva” e parou para analisar uma delas, que sempre a impressionava muito naquele tempo: um terreiro onde as galinhas ciscavam e um homem de grandes mãos quadradas atirava grãos de milho; era uma figura como as outras, mas a menina que ela fora costumava ficar minutos infindáveis a contemplar o gesto que lhe parecia reconfortante, a nitidez dos grãos de milho ao sol, o contraste de claros-escuros nas superfícies, a sugestão de movimento que lhe dava asas à imaginação, os tons nuançados de azul no céu claro. Do formato grande do livro, de apenas trinta folhas, seu pensamento voou para uma sala com um grande sofá e poltronas de almofadas claras junto a uma janela estreita e alta, um tapete espesso cor de musgo e uma porta se abrindo para deixar entrar uma adolescente de longos cachos louros, levemente vestida por um tecido de florezinhas azuis, babados nas mangas e na saia. A visão a fez sorrir, enquanto a luz que vinha da janela desenhava a silhueta esguia e fazia brilhar os cristais por trás das vidraças de um móvel de ébano. Uma paz indescritível se apossara de seu plexo. Naquele dia tinha conhecido o homem que viria a ser seu marido alguns anos mais tarde, e logo a imagem volumosa mas ágil de Bernardo lhe aparecia sorrindo. Estava leve, inteiramente tomada pela felicidade de ser quem era, plena e obscura, vendo-se de mãos dadas com ele, ah, tão felizes, debruçados no cais sobre o Sena, ma reine, mon roi, e nem mesmo a dor de perder Bernardo turbou a serenidade com que suspirava de olhos fechados, enquanto as imagens se afastavam sem sofrimento, cobertas por uma névoa esbranquiçada. “Tudo está resolvido”, pensou, e um sorriso se fixou para sempre em sua boca murcha.
A nesga de luz se insinuou por uma fresta da grossa coluna de nuvens acumuladas sobre o condomínio e atravessou a vidraça do quarto, incidindo diretamente sobre sua cama e seu peito coberto pelo edredom. Foi muito rápido. Logo o raio luminoso desapareceria. Junto com ele, o fio frágil de sua vida deixava aquele aposento há tanto tempo dominado pelo cheiro forte dos medicamentos e das fraldas geriátricas, mudadas a horas certas pela enfermeira mal-humorada.


 Foto M.H.G. Pais. Geada.

segunda-feira

A boneca e o nada

Imagem sem menção de autor.


Dentro da velha casa de bonecas
minha predileta está meio desconjuntada
braços de pano pendentes
cara de nada absoluto.

Bobagem ou contradição em termos
não pode ser o nada absoluto
se ainda é uma boneca
mesmo quase desfeita
mas penso
:
parte dela virou pó
não é mais a boneca que foi
porque começa a navegar no nada.

Triste e um pouco assustada
olho o espelhinho da casa e percebo que
o nada absoluto está em meu rosto também.

sexta-feira

Mulher de verde

Uma menina vestida de branco se destacou da sombra das amendoeiras e caminhou até a beira do lago escuro. Não sabia que era o centro da paisagem. Se soubesse, teria achado engraçado e brincaria com isso, ou se intimidaria a ponto de fugir para perto da mãe. Mexia na água turva e esverdeada com uma fina varinha que o limo ia impregnando de seu verde pegajoso. Olhou durante alguns momentos os gansos esvoaçando na outra margem e contou-os com a varinha erguida em sua direção como quem regesse uma orquestra invisível. Depois correu rampa abaixo e foi chamar outra menina que deixara sentada no banco de pedra minutos antes. Falaram bem baixo, e depois correram para o lago. As vozes eram agora o som da manhã.
Verdes sombrios e luminosos, cores esmaecidas no espelho dágua. A outra menina seguiu a primeira, e agora atiravam pequenos pedaços de pão para os peixes. Os gansos haviam desaparecido e o sol leve aquecia pouco. Era bem cedo, muitos ruídos estavam por vir, o calor iria apertar.
Um grupo de crianças apareceu de uma das aleias laterais, acompanhado por duas mulheres. Uma delas trazia um trabalho manual, a outra empurrava um carrinho de bebê. Sentaram-se lado a lado e começaram uma conversa embalada pelo vaivém do carrinho. O vozerio aumentou pelo ar ainda meio adormecido. Uma carrocinha de pipoca e outra de sorvete se aproximaram, e uma grande bola de gomos coloridos pareceu florescer em pleno ar, saltando de mão em mão. Duas bicicletas contornaram a praça, e alguns corredores apareceram, vestidos de malhas e bermudas.
Em meio à cena sinônima de todos os dias, uma freada violenta despertou as atenções e por alguns segundos centralizou o movimento do pequeno parque em uma só direção. Alguém havia sido atropelado, logo depois da curva fechada de que as amendoeiras tapavam parcialmente a visão.
Com algum esforço, a mulher de verde que contemplava o parque, do quiosque de bambu e sapê sobre a rampa do lago, conseguiu enxergar o homem sobre o asfalto. De onde estava, estremeceu diante da quebra que aquele choque significava. A vida se desmantelava, e o que parecera certo e seguro alguns momentos antes era agora um punhado de sensações incertas, fugidias. As vozes mudaram de tom, e um grupo novo se formou no mesmo minuto, contemplando o corpo em posição fetal junto ao meio-fio. Recostado num carro, um homem de cabelos brancos parecia paralisado, enquanto outro, mais novo e mais forte, gesticulava intensamente no meio do círculo de curiosos, e o som de sua voz chegava até os ouvidos da mulher de verde. Alguém que ela não podia ver gritava por Isabel, e uma criança começou a chorar longe dali.
Virava o jogo dos espelhos, o caleidoscópio girava. A mulher resolveu seguir seu destino, entregando aos estranhos o corpo que não lhe pertencia.
O sol resvalava pelo toldo amarelo de uma loja e se derramava na calçada clara e larga. "Glória, glória, aleluia", ouviu a mulher, num coro de poucas vozes. Procurou o grupo com os olhos, estavam do outro lado da rua, na praça ensolarada, desafinando com todas as forças de seus oito pulmões. Teve a impressão de que uma bolha de sabão estourava dentro de sua cabeça, abrindo espaço para uma solidão límpida e soberana.
Seguiu assim entregue a seus pensamentos durante algum tempo, até que as sirenes da ambulância e da polícia lhe trouxeram a súbita lembrança do corpo no asfalto, ainda tão perto, e lhe provocaram uma sensação avassaladora como uma culpa. Procurou no fundo da bolsa um lenço de papel. Durante alguns segundos, a angústia tomou conta de seus gestos e confundiu seus pensamentos. Segurava a bolsa aberta quase inconsciente, e um sentimento de urgência incontrolável foi crescendo dentro dela e pôs sua memória em funcionamento frenético. De repente se pôs a correr, porque havia pouco tempo, não sabia exatamente quanto, mas bem pouco, para encontrar as pessoas e provar a si mesma que a vida tinha valido a pena.

Trecho de O escritor, o pintor e os dentes brancos do Morais.

Imagem de Dante Barbosa Guimarães. Jeanne.