quarta-feira

Uma história incompleta

3

Desligou o computador às três e tanto da madruga, como gostava de dizer. Nada tinha a ver com coisa nenhuma. Os parcos registros que encontrara em redações de jornais e emissoras de televisão, artigos e dados da época, não batiam com a maior parte das mensagens que tinham chegado aos borbotões nos últimos dias. Ler aquilo tudo estava lhe tomando um tempo longo demais, e como quase nada podia ser aproveitado, passara a trabalhar com amostragens, escolhendo o que à primeira vista lhe parecia de alguma consistência. Lia três ou quatro linhas e separava a mensagem para uma leitura mais atenta ou a atirava às sombras virtuais da lixeirinha na coluna à esquerda. O máximo que conseguira tinha sido um esquema cheio de buracos e dois ou três depoimentos que lhe pareceram autênticos. Em resposta, consultou os leitores em questão sobre uma entrevista cara a cara, para a qual propunha ir a seu encontro, mesmo que em outra cidade. Avisava que estaria munido de um gravador e, se lhe fosse permitido, publicaria fotos desses leitores prestimosos na série do jornal e, mais tarde, no livro em que pretendia falar do assunto.
Na manhã seguinte, logo depois do café, rumou para o escritório, uma sala alugada a duas quadras de casa. Queria trabalhar em paz, sem telefones ou campainhas interrompendo o fio de seus pensamentos, sem mulher e crianças desviando sua atenção a todo instante. A sala ficava num prédio meio decadente, um quinto andar de frente para o mar de Copacabana; um lugar onde estava no meio de tudo e nada o perturbava. Ligou o computador e consultou a caixa de correio.
Milagrosamente, a primeira mensagem que encontrou, vinda de uma tal Mônica Lessa, pareceu-lhe mais substanciosa que todas as outras. A moça contava tintim por tintim o que vira no dia do desastre, e não fora pouca coisa. Era um relato minucioso e ao mesmo tempo econômico, que explicava as coisas de modo claro e direto. Falava da perda de uma amiga de infância que estava com ela na ocasião, da dor que a fizera cair em depressão e das imagens terríveis que guardava nitidamente na memória. Uma longa terapia lhe havia mostrado que nada atenua mais uma dor ou uma lembrança assim arrasadora do que falar sobre ela, muito e durante muito tempo, sem se censurar e sem calar o que mais nos perturba. Uma talking cure, como no tempo de Freud e suas histéricas. Ainda que tudo esteja bem presente ainda, dizia o texto de Mônica, quero aproveitar a oportunidade não só para contribuir com seu propósito de encontrar afinal o(s) culpado(s), como para chamar a atenção para a omissão do prefeito daquele tempo, Lauro Munhoz Clemente, que se revelou um homem incrivelmente frio, indiferente à dor daquelas pessoas e de suas famílias. Muitos deles deviam ser eleitores seus, e no entanto – a mensagem continuava por mais um parágrafo nesse tom ressentido, e Pôncio ficou pensando no significado daquilo. De qualquer modo, valia a pena procurar um contato pessoal e tentar extrair dessa quase vítima e testemunha ocular detalhes que fossem úteis para precisar melhor a história toda.
Pôncio achava que cada acontecimento tem uma cara própria, assim como as pessoas têm temperamentos e idiossincrasias específicas. Por trás de um acidente sempre existem falhas, fraquezas não esclarecidas depois, porque as pessoas se defendem, se protegem e evitam pôr a bunda na janela numa hora dessas. Os dados que Mônica ainda podia fornecer, as coisas que poderia esclarecer lhe serviriam, estava certo disso. Lauro Munhoz era agora um senador da república, e isso era um dado bem interessante. Chegaria a hora de procurar esse personagem chave, e era bom que fosse limpando o caminho para chegar lá com o mínimo de obstáculos.
Mônica Lessa era uma mulher bonita, alta e discreta. Chegou exatamente à hora marcada, reconheceu-o de pronto – estou de blusa vinho e calça jeans, ele dissera – e os dois se acomodaram numa das mesas do bar quase vazio. Ainda não eram cinco horas da tarde. Pediram um chope gelado para ele e um suco para ela. Reparou no olhar rápido com que a moça fez o reconhecimento do ambiente, observando-o também de alto a baixo numa única piscada. Aparentava descontração e sorria com facilidade. Pôncio imaginou-a digitando a mensagem e se felicitou por ter marcado aquele encontro. Ainda que não conseguisse avançar muito em sua pesquisa, o que era sempre uma incógnita, acreditava que Mônica lhe seria útil de algum modo. Não era o tipo de pessoa que se desloca e vai a um encontro daqueles sem ter muito a dizer. Além de inspirar confiança, era muito segura de si, bem articulada e tinha uma voz agradável, bem modulada, que lhe dava prazer ouvir.
— Bom, ela disse, estou aqui. – Eu também, ele respondeu, e os dois riram. – Acho que estamos pensando na mesma coisa, ela arriscou. Pôncio jogou a cabeça para trás e sorriu de leve – espero que sim. – Você quer saber alguma coisa sobre o desabamento do estádio do Rio Comprido, não é? – E você me disse em sua mensagem que tinha boas informações a esse respeito. Ela assentiu de leve e se endireitou na cadeira.
— Bem, começando do começo: cheguei lá meia hora antes do show, para escolher um bom lugar e ver os cantores e os músicos entrando, talvez ver um deles de perto, falar com ele, pedir um autógrafo. Eram vários artistas de sucesso, bons cantores, músicos da pesada. Eu era bem jovem, e comigo foram duas primas adolescentes, Marina, amiga do tempo de escola, e uma outra amiga, Margarida. O estádio foi ficando muito cheio, e quando o show estava para começar, o primeiro conjunto afinando as guitarras e o público se agitando nas arquibancadas, Margarida começou a sentir falta de ar. Era uma crise de asma, uma coisa que às vezes acontecia a ela, e tivemos que sair do meio da multidão. Foi difícil, mas chegamos ao corredor de circulação depois de uns quinze minutos, ela respirando com dificuldade e as meninas se lamentando por causa do show e dos lugares perdidos. Disse a elas que não podia deixar as duas no meio do povo, que tinham ido sob minha responsabilidade, e que a mãe delas ia ficar brava comigo se fizesse isso. Marina, minha amiga de escola, tinha ficado no estádio, mas não quis deixá-la encarregada de olhar as meninas. Quem respondia por elas era eu. Parece que estava adivinhando. Margarida foi parar na emergência de um hospital próximo, e nós com ela.
— Então você não estava lá dentro quando – não, não estávamos lá dentro. Graças a Deus e à asma de Margarida. Pôncio se mexeu, impaciente. – Sei o que você está pensando, disse Mônica, sorrindo. Mas espera um pouco, já chego lá. Deixamos Marina sendo medicada e voltamos ao estádio, porque ninguém se conformava de perder o show assim, queríamos ao menos aproveitar um pouco de nossas entradas. Não conseguimos voltar para junto de Marina, e nos acomodamos como foi possível. Mas pouco depois do acesso às arquibancadas, ouvimos um ruído como um estrondo abafado e a estática dos microfones disparou, de modo que paramos e tapamos os ouvidos, até que outro estrondo mais forte nos deu a sensação de que o chão estava tremendo e nós voltamos para a rua. Depois disso, foi aquela desgraça que se viu e até hoje ninguém explicou direito. Minha tia, a mãe das meninas, foi pessoalmente agradecer a Margarida por sua alergia respiratória, que salvou nossas vidas e a dela própria. Lamento muito a perda de Marina, embora reconheça que teria sido ainda pior se tivesse deixado as primas em sua companhia. Mas não era só isso que eu tinha pra lhe dizer.
Daí em diante, o depoimento de Mônica se tornou um laudo acusatório contra o prefeito Lauro Munhoz. Pôncio ouvia tentando discernir o que era puro ódio do que seria verdade naquele discurso. Era uma fala controlada, sóbria e quase sem pausas, mas os olhos dela haviam se tornado mais escuros e sua expressão estava carregada. Falava baixo, mas às vezes sua respiração parecia se alterar, as narinas delicadas se moviam como as de um cavalo depois da corrida e os lábios se contraíam. Imaginou quase divertido que podia estar lidando com uma assassina em potencial, quem sabe uma paranoica obcecada pela ideia de acabar com o prefeito e sua carreira.
Ela porém se explicou. Tinha uma razão pessoal para detestar o sujeito: na época da eleição, acreditava piamente nas qualidades de político de Lauro, do qual era amiga pessoal; ajudou em sua campanha, conseguiu muitos votos entre parentes, amigos e colegas de trabalho. Eleito, Lauro abusou da confiança dela, que esperava um lugar na prefeitura com um salário à altura de suas aptidões de arquivista e comunicadora. Na época, lutava contra a doença da mãe, um câncer de mau caráter, resistente ao tratamento. Ele no entanto não cumpriu as promessas e, mais grave ainda, não repôs o rombo que sua campanha tinha deixado nas economias dela, uma soma considerável, o que a levou ao desespero quando percebeu que o prefeito evitava atender seus telefonemas e a deixava fora da agenda de contatos.

segunda-feira

Uma história incompleta

Líria se debatia entre o desejo de se vingar, digitando freneticamente um número inimaginável de mensagens confusas e mentirosas, e os telefonemas de Larissa, inconformada com a tristeza da amiga. Estava quase convencida a abrir o jogo, contar logo tudo e, quem sabe, estragar mais um pouco a vida de Pôncio. Mas à medida que gastava sua energia e inventividade naquela maratona maluca, a voz da outra lhe despertava uma espécie de piedade, que ela a princípio rejeitara como uma bobagem sem qualquer efeito positivo para ninguém. Numa tarde em que se sentia particularmente desgostosa de tudo, a amiga a convidou para jantar em sua casa. O primeiro impulso foi perguntar se o crápula – “nosso amigo Pôncio” – estaria lá, o que a tentava e repelia exatamente na mesma proporção. – Nada, minha filha, Pôncio anda fazendo serões intermináveis por conta da tal história do estádio, você nem imagina. – É mesmo? Líria teve que controlar uma risada, despropositada no momento. Combinado o jantar, passou na florista da esquina antes de ir para casa, porque Larissa merecia, mas antes, parada diante do quiosque, foi acometida por um impulso meio indefinível. Era como se fosse uma traição levar flores para a amiga cujo marido ela odiava e queria ver destruído e fracassado. São duas pessoas diferentes, ai, muito diferentes, discutia consigo mesma, enquanto pagava o vasinho de orquídeas rosadas. Verdade que gostaria muito que aquelas flores lhe dessem um bruto azar, que não devia atingir a amiga. Depois de novo refletiu sobre o assunto, como se quisesse fugir da evidência de que destruir um marido no prazo de validade era atingir também a mulher, que na certa iria sofrer com isso. Nenhum argumento seria capaz de abalar uma realidade tão cristalina. E havia os filhos, um casalzinho de pré-adolescentes lindos, embora levassem nas faces os traços amaldiçoados do pai. São filhos dele, mas não o mesmo, tornou a pensar, enquanto entrava no banho.
Chegou à casa de Larissa ainda perturbada por pensamentos incômodos que não conseguia afastar. Mas quando saiu, lá pelas dez e meia, estava mais tranquila, e a outra se declarou satisfeita com a mudança. – Que bom que está conseguindo dar a volta por cima, Líria. Eu sabia que você ia conseguir, sua cabeça sempre foi muito boa. Além disso, a vida de trabalho que você leva ajuda a se recuperar, a não se entregar. Agradeceu e saiu pensando que a outra devia ter razão nesse ponto. Mas a vida cheia de trabalho que estava levando não era bem a que Larissa conhecia. Foi andando para casa, a noite estava fresca e agradável, toda estrelada, e ainda havia algum movimento nas ruas em que devia passar. O que enchia seu tempo nessas últimas semanas não era o trabalho da empresa, que nem chegava a ocupar seus pensamentos fora do horário regulamentar. O que enchia seu tempo de preocupações e atividade durante esses dias era um objetivo alheio a Laio e ao divórcio. De qualquer maneira, a luta para tirar do caminho a pedra que a fizera tropeçar não deixava de ser uma distração. O resto se veria depois.


sexta-feira

Uma história incompleta

O estilo não tem menos de 75 anos, pensava Pôncio, entre divertido e impaciente. Mas a história desse senhor tem bastante apelo. Vai certamente figurar entre as narrativas paralelas, aquelas que ilustram e tornam mais comoventes fatos dessa categoria. Agora, nesta primeira etapa, preciso de relatos concretos, diretos e vibrantes. Preciso sacudir e chocar as pessoas para que se liguem na reportagem e queiram saber como os fatos foram se sucedendo e por quê.
Suspirou fundo e forte, antes de se levantar para ir à janela. Tinha passado pelos arquivos da prefeitura, mas para sua surpresa não havia qualquer documento disponível da área de construção nem da Defesa Civil. Havia registros de acidentes geológicos, deslizamentos, acidentes geotécnicos, mas nem uma palavra escrita a respeito do maior desses acidentes, datando apenas de dez anos antes. Se o estádio tivesse passado a pertencer a outra esfera de governo, ele teria ficado sabendo, assim como todos os habitantes da cidade. Além das informações que começavam a chegar via correio eletrônico, achou que devia procurar pessoas ligadas às áreas afins – prefeitura, esportes, em especial futebol, além dos profissionais de espetáculos, músicos, produtores, patrocinadores. Um trabalho de Hércules, mas valeria a pena. Estava farto de rotinas, o mesmo do mesmo, a coluna, as reportagens sem muito destaque, programinhas de tevê com pouco ibope. Sua última performance de mais visibilidade já completara dois anos e meio, entrevistando um poeta romeno presente a um festival anual de literatura que atraía gente do mundo inteiro – um cara sombrio e pessimista que a todo instante o fazia lembrar do conde vampiro.
Havia outras mensagens na caixa do correio. Uma delas, em inglês, era ainda mais longa que a de Leônidas Placidino e estava assinada por um nome impronunciável, que parecia polonês ou alguma outra língua assim propensa ao consórcio de consoantes; outra vinha em parágrafos de palavras emaranhadas e sem uma pontuação plausível, que Pôncio em vão tentou deslindar. Uma terceira, mais curta e perfeitamente inteligível, não falava do desmoronamento do estádio, mas de outro assunto bem estranho: o ataque das abelhas africanas no México, quando morreram cerca de 200 pessoas, só nos seis primeiros anos depois da chegada das bichinhas ao país. No entanto, continuava a mensagem, assinada por Denise d’Allencourt, a incidência de sérios ataques fatais a animais domésticos é, geralmente, maior do que em pessoas. Dentro dos dois primeiros anos da chegada destas abelhas ao Texas, elas causaram morte a 11 cães, mas somente uma morte humana. E eu com isso, pensou Pôncio, sentindo-se cansado demais para continuar.

quarta-feira

Uma história incompleta

Prezado senhor,

Creio que posso ser útil a seu intento de conseguir novos dados e informações capazes de avançar, um mínimo que seja, na elucidação da catástrofe que atingiu centenas de pessoas em 1998. Passo então a lhe narrar, o mais minuciosamente possível, o que presenciei durante aquele dia de triste memória para a cidade do Rio de Janeiro.
Estava eu ainda à procura de uma parenta, que me avisara de sua intenção de assistir ao show daquela data. Como não tivesse sucesso na busca meramente ocular, pensei em fazer uma chamada por um dos alto-falantes instalados na parte superior do estádio. Fosse hoje, naturalmente teria feito uma ligação pelo telefone celular, bem mais simples. Mas não era esse o caso, tais aparelhos eram ainda pouco usados e volumosos, pelo que muita gente os evitava. Dirigi-me então a uma das cabinas ocupadas por vigias e seguranças a serviço dos astros, já então em plena apresentação. Nesse exato momento, um ruído estranho causou forte estática nos microfones e creio mesmo que houve uma rápida mudança no compasso do sucesso em execução. Mas logo a seguir, questão de um ou dois minutos, outro ruído mais forte ainda causou uma sensação de tremor de terra na plateia, que ensaiou um começo de pânico. Houve gritos, gente tentando sair de qualquer maneira, crianças chorando. O apresentador do show foi até o microfone pedir calma, dizendo que nada de anormal estava acontecendo. Foi logo desmentido por um estrondo e uma rachadura que foi se formando num dos lados da arquibancada. Nesse ponto, ninguém mais segurava o público aterrorizado, quer pelo fato assustador, quer pelo ruído que cobria toda e qualquer comunicação dos responsáveis, que já nada poderiam fazer para evitar o desastre.
Consegui uma saída rápida, graças ao fato de estar indo em direção à referida cabina, situada junto a uma das laterais de circulação. Por sorte minha, também, a queda da construção começou do lado oposto àquele em que me encontrava. Lancei uma olhada de relance ao interior do estádio e pude ver as pessoas sendo literalmente engolidas pelas avalanches de concreto que já então rolavam livres. Julguei ver minha parenta – uma prima em segundo grau, para ser mais preciso – mas nada poderia fazer para salvá-la, a não ser que voltasse sobre meus passos e arriscasse minha própria vida, já a salvo, quase alcançando a passagem que me levaria à rua em segundos.
Gostaria porém de informá-lo sobre uma ação que é, ainda hoje, razão de grande orgulho e íntima felicidade para mim: consegui salvar uma criança, um menino de nove anos, que lá estava em companhia do pai e da mãe, ambos mortos na tragédia. O menino, de nome Alberto Morais de Oliveira Sintra, hoje estudante de arquitetura (sinal de que o choque não lhe fez um estrago irreparável, felizmente), soube informar onde encontraria seus parentes, tios e avós, aos quais foi entregue no mesmo dia, são e salvo, embora traumatizado pelo acontecido, acredito que para toda vida. Alberto estava no meio do corredor, de volta da ala dos banheiros, e ficara paralisado e atônito, sem saber o que fazer nem para onde se dirigir, quando passei por ele e o tomei ao colo, levando-o comigo para a rua. Ficamos amigos, quero-o como a um neto ou a um filho. Se isso puder interessá-lo, pedirei a ele que lhe escreva uma mensagem narrando seu ponto de vista e suas memórias daquele dia terrível.
Espero que tenha sido de algum modo útil a sua reportagem, pela qual, aliás, quero felicitá-lo.
Um cordial abraço
Leônidas Placidino de Vieira Corrêa

terça-feira

Uma história incompleta

Foi daquelas amizades que a gente imagina sem fim. De antes de se casarem, bem antes. Passaram juntas no vestibular e durante aquele mesmo ano conheceram Pôncio, já no final do curso, estagiário do jornal onde estava até hoje. Laio viera depois, era um pouco mais velho que elas. Líria olhou as fotos até que os olhos começaram a misturar as imagens. Já no primeiro ano tinham se tornado inseparáveis. Jogou o álbum na mesinha de centro e riu, enxugando os olhos, coisa fora de moda ter um álbum de retratos tão careta. Mas sem ele, como iria rever as caras jovens e os olhos brilhantes daqueles dias? As digitais mais recentes estavam no computador, mas não pretendia perder tempo derramada sobre o passado que Pôncio – e Laio! – tinham pisado daquele jeito.
Pensara em procurar a amiga, Larissa devia ter alguma coisa a dizer a ela, mas pensou melhor e resolveu esperar. Fez bem – Larissa ligou numa daquelas manhãs e combinaram almoçar juntas. Tinha certa esperança nesse encontro e lhe deu alguma alegria vê-la chegando. Logo no início a conversa girou sobre um nada-de-novo que fez sumir qualquer veleidade de mudança de cara da história toda. Larissa sorria como sempre, abraçou-a com o mesmo calor e beijou suas bochechas sem que ela percebesse qualquer falsidade ou cautela. Mostrou uma blusa que acabara de comprar, falou das crianças – um casal de poncinhos – e perguntou pela vida dela como se tivesse chegado de Cancún ou de Paris. – Então você não sabe? – Líria perguntou e logo se arrependeu, mas em seguida achou que era isso mesmo, tinha que se abrir com a amiga como sempre, porque ser casada com aquele estrupício não a tornava outra pessoa até segunda ordem.
Larissa a encarou cheia de espanto. Como, divórcio? Vocês são um dos casais mais harmoniosos que eu conheço, não acredito que estão... – Pois pode acreditar, e Líria não segurou o choro dessa vez. Uma coisa ficou bem clara, no entanto: Larissa não sabia de nada, a besta do Pôncio não lhe contara. Isso queria dizer duas coisas: que além de mau caráter o cara era um dissimulado e que o casamento deles também não ia nada bem. Deu algumas explicações esfarrapadas à amiga, que a consolou como pode num momento daqueles. Depois lavou o rosto, despediu-se da outra, que a tocava com o cuidado com que se toca um velhinho que parece prestes a desmontar, e voltou ao trabalho.

quinta-feira

Uma história incompleta

2

Quando o relógio da sala bateu duas horas, Líria despertou assustada e pulou do sofá. Não queria chegar atrasada à reunião do departamento de RH. Passou no banheiro, deu um jeito nos cabelos, refrescou o hálito e foi até o quarto para trocar a blusa meio amassada. Batom dentro da bolsa, celular ligado e chave passada na porta, entrou no carro e teve ainda que esperar que o porteiro atendesse o interfone.

Chegou com uma expressão serena, talento de atriz herdado da mãe. Tomou seu lugar sem chamar a atenção do chefe do departamento, sujeito difícil de lidar, e logo trocava ideias com o grupo sobre datas e amenidades. Uma reunião de rotina, da qual não se podia esperar resultado muito produtivo. Um acerto de contas inventado para mostrar serviço e reafirmar o temperamento controlador do doutor Lamego. Pouco antes das quatro horas estava de volta à sala do oitavo andar, onde a esperavam algumas carteiras de trabalho e dois funcionários de ar entediado. Tinha almoçado em casa, bem perto da empresa, e aproveitara para tirar um cochilo que acabou se aprofundando num sono de quase hora e meia. Dormira muito mal à noite, pensando nos detalhes do plano que pretendia pôr em prática imediatamente.
Eram mais ou menos cinco e quarenta quando pegou de novo o jornal que começara a ler durante o café da manhã. Abriu na segunda parte do primeiro caderno e lá estava a coluna de Pôncio. A crônica tratava de outro assunto, mas no final, separada do resto do texto, havia uma notinha reiterando o assunto da véspera e agradecendo aos leitores que já se haviam manifestado. Líria riu discretamente e entrou no correio eletrônico. Mas não digitou em seu próprio nome. Abriu nova conta e redigiu uma mensagem longa sob o novo endereço, enviando-a a ponciojornal@jornal.com. A seguir entrou em outro servidor de correio. Cadastrou mais alguns endereços com nomes inventados e enviou novas mensagens. Estava contente com o resultado. Era hora de voltar para casa, e o sentimento de algum dever cumprido enchia seu espírito de alegria. Mas ainda havia muito a fazer.

domingo

Uma história incompleta



Laio trabalhava ainda na companhia que provavelmente só iria deixar quando a morte ou a idade o tirassem de lá. Ali tinha crescido na profissão – era engenheiro de telecomunicações – e estava na antepenúltima posição da hierarquia. Empregara vinte e cinco anos de sua vida na carreira, desde o concurso de que saíra primeiro colocado até aquela sala com grandes painéis de vidro, uma mesa de reunião aparatosa e os abajures de aço escovado. Havia flores na mesa de centro, reproduções de pintores célebres pelas paredes e uma estatueta de marfim, presente de Líria, quando completaram cinco anos de casados. Antes de tudo que os tinha atropelado meses atrás.
— Você não sabe o que está dizendo – ela respondera, no início, negando sempre.
Quase convencido, Laio pensou em deixar a questão esfriar antes de tomar qualquer decisão. Afinal, tudo não passava mesmo de um telefonema anônimo. Mas dois dias depois do primeiro embate, aquela acusação quase grosseira do amigo, não tinha entendido direito o porquê da coisa toda, e Laio caiu numa tristeza muito próxima da depressão. – Ele manda em você – Líria repetia em prantos, e isso foi antes que ela começasse a acusá-lo de estar tendo um caso com o jornalista. – Você está completamente louca – lembrava de ter dito, no auge da fúria, e de ter deixado a marca dos dedos no rosto dela.
Quando caiu em si e avaliou a situação, teve muita vergonha do que fizera. Não se perdoaria nunca e Líria muito menos. Deu razão a ela, convenceu-se de que não havia saída senão deixar que tudo caminhasse para o fim, mesmo depois de terem conversado com a cabeça mais fria, do pedido de desculpas, das flores, da tristeza que ele não tentou esconder. Estava disposto a ser um ex-marido exemplar, atento, amigo, mas a decisão ainda não lhe parecia firme o suficiente e não entrariam com o pedido de divórcio senão depois que Líria se declarasse cansada daquilo tudo, pedindo que a deixasse livre para seguir sua vida. – Não quero mais ter que falar com você a toda hora, quero me sentir eu mesma de novo. – Não tem volta? Tem certeza? Não vai dar pra apagar tudo isso? – e ela apenas desviou os olhos e avisou que tinha um compromisso dali a meia hora. – Líria, ainda não estou certo... – Mas continua amigo daquele crápula.
Pronto. Pôncio era a pedreira no fim do caminho. Talvez fosse o medo de parecer covarde. A incerteza quanto ao que o outro tinha dito sobre ela. Ou então, quem sabe, a secreta corporação dos machos funcionando de um jeito assim, subliminar, que o deixava inseguro e incomodamente culpado de algo que não sabia o que era. Pôncio, até então isento de toda dúvida, poupado mesmo daquela desconfiança mais secreta que não respeita um irmão, o pai, seja quem for. Não se lembrava de alguém mais confiável. O que o atormentava ainda era o motivo daquilo. Ainda não conversara com ele depois, atordoado pelo tremor de terra que se desencadeara assim, de surpresa. Não sabia se ainda era seu amigo, mas Líria sabia. Líria sabia tudo, e era irritante, porque fazia sua culpa brilhar como um caco de vidro espetado na carne.

terça-feira

Uma história incompleta

Esta é uma história longa. Por isso publico capítulo por capítulo. Se alguém gostar, fico feliz. Se não, fico feliz também, porque fui eu quem escreveu a história toda.

1
O relógio da sala ainda bate as horas. Tem exatamente cento e dez anos de existência e ainda bate as horas. Levantou com certa lentidão da rede, largou o jornal sobre a bancada e fez uma careta. Dia chato. Foi até a cozinha, tomou um copo de água e olhou da janela o estacionamento quase vazio. Laio detestava esse estacionamento, pensou, e voltou ao escritório para ler o resto do jornal. De passagem pegou uma pera rosada e cheirosa.
Voltou à cozinha minutos depois para fazer um café e pensar, no banco de madeira comprido e pesado, onde se sentia mais magra e costumava meditar sentada, em posição fetal, sentindo o cheiro vindo da cafeteira italiana que ele lhe dera no ano passado. O tédio tinha ido embora e alguma coisa muito promissora fervilhava dentro dela como uma juventude – transviada, vá lá – um ímpeto qualquer de entusiasmo. Apoiava a ponta do nariz sobre o joelho dourado, ideias cruzando o pensamento. Maquinar coisas não era seu forte, mas naquele momento estava prestes a fechar um plano perfeito e digno de um bandido com muitos anos de prática. A imagem de Pôncio lhe veio nítida, clara; quase ouvia a voz dele dizendo: tudo que você merecia era perder até o ar, morrer de parada respiratória, e tinha rido na cara dele de puro ódio. A primeira coisa que lhe ocorreu naquele momento foi que Pôncio passava por um surto de homossexualidade. Até então nunca o julgara assim. Difícil de acreditar, mas enfim, nada é impossível.
Riu para si mesma, porque também tinha pensado num interesse tardio do jornalista por ela. Fosse lá como fosse, Pôncio era o principal responsável pelo fim de seu casamento com Laio e isso não é coisa que se perdoe. Enquanto tomava café, o telefone tocou e Líria se distraiu numa conversa sem consequências durante mais de meia hora. Por trás do riso e dos gestos do momento, no entanto, a ideia continuava acesa como uma nova razão de viver.

sexta-feira

São dois rios que passam em nossa vida




Ao contrário do que se imagina, quando sumariamente se condena o ódio, o que se está fazendo não é um julgamento, mas uma redução. O que merece julgamento e condenação são os atos, não os sentimentos. Parodiando a letra do Aldir, os sentimentos e as manhãs são espontâneos, “levantam do escuro e ninguém pode evitar”.
Há muitas formas de amor, e há também muitas formas de ódio – sentimentos muito mais parecidos do que se imagina a uma primeira visada. Por isso o falso impasse: amor e ódio seriam opostos, antagônicos. Um anularia o outro. Por definição – acredita o senso comum – amor quer somente o bem do outro, ódio somente seu mal.
Qualquer conceito – acima de tudo os que o senso comum consagra – requer revisões periódicas. Acontece que entre um e outro extremo as variações são infinitas. Amor e ódio são como dois rios que nascem juntos e correm muito próximos durante a maior parte de seus cursos; por serem líquidos, qualquer chuva forte ou movimento mais brusco faz com que suas águas se misturem. Escandalizar-se com essa afirmação me parece uma daquelas hipocrisias ingênuas (mas não inofensivas) que se repetem todos os dias por hábito ou falta de crítica, que são os dois maiores amigos da mentira e do equívoco.
Quando se idolatra alguém a ponto de não poder duvidar desse alguém e por ele ou ela se pratica qualquer ação ou se faz qualquer sacrifício, é provável que já se tenha começado a surdamente odiar esse alguém. É fácil ver por quê: o ídolo, o ser que se idealiza, se alimenta da carne, da vida e do sangue daquele que o idolatra.
Amores como o materno e o paterno não estão excluídos desses percalços. Quantas vezes se experimenta impaciência extrema com um filho que impede nosso lazer e nossa liberdade de ir e vir, atrapalha nossas conversas, consome o tempo que gostaríamos de estar aplicando em atividades mais lucrativas e agradáveis do que limpar um bumbum ou inventar expedientes para alimentar um guri  inapetente, que ainda por cima se mostra malcriado e teimoso. Quantas mães e pais empenham anos de sua vida (às vezes os melhores, enquanto ainda se é jovem e cheio de planos e sonhos) para cuidar de um filho deficiente, prejudicado por um acidente ou um distúrbio de origem genética e sem esperança de cura? O senso de responsabilidade e a compaixão têm um papel importante nesses casos, mas a animosidade em relação a essas pessoas sempre existirá como reação natural de um ser humano impedido de viver plenamente a própria vida. Dirão talvez que isso não é ódio. Eu digo que é uma de suas manifestações mais brandas e civilizadas. Querem a prova? Se faltar autocontrole, formação moral e maturidade emocional, como nos tristes casos que conhecemos bem do dia-a-dia, teremos mais uma criança abandonada, rejeitada e perdida para si mesma e para a sociedade. Ou, mais escancaradamente, o ódio paterno ou materno se manifestam na violência exercida sobre essa criança.
Assim como acontece com o ódio extremado, também o amor extremado é destruidor. Como a recíproca é sempre verdadeira quando se trata de sentimentos, a lógica do amor absoluto exige em troca que o ser amado seja tudo aquilo que se atribui a ele e supõe que também o amado seja integralmente dedicado, grato, confiável, amante e encantado com quem o ama tanto. Mas isso não acontece, por vários motivos. Primeiro porque esse tipo de relacionamento é ilusório, idealizado, falso e impossível. Segundo porque o outro é e será sempre o outro, por mais que se projetem nele os próprios sentimentos.
Além desses motivos intransponíveis, o amor que se autodenomina perfeito destrói o ser amado porque não lhe deixa ar e espaço suficiente para a liberdade de se amar a si mesmo e se realizar como ser único. E se na prática não se exigir essa simetria total e compreender que o outro pode sentir diferente e experimentar outras necessidades, começa a se formar a tsunami do ciúme menos ou mais declarado, da possessividade reprimida – e olha o ódio despontando aí, minha gente!!!
Entre pessoas ditas civilizadas, capazes de autocontrole e autocrítica, o ódio talvez se mostre mais sob a forma de raiva, implicância ou até se volte contra o sujeito que o experimenta, como um escorpião que injeta em si mesmo o próprio veneno. Mas ainda nesses casos, ele pode também eclodir em toda sua força, primário e trágico.
Não há como se iludir: ninguém está isento de ódio, nem é incapaz de manifestá-lo. Ódio não é a outra face da moeda do amor, mas seu continuum. E como certos venenos, em pequenas doses pode ser imprescindível para mover a vida, que sem ele ficaria estagnada num pântano de sentimentalismo e mesmice.
A grande sacada em relação à energia desses sentimentos, capazes de destruir seu objeto, é que ela pode também se metamorfosear em força criativa. Nesse caso, em que se torna capaz de reinventar a visão de mundo de uma pessoa e modificar a realidade, essa energia pode ser responsável pelo surgimento de obras de arte, grandes invenções, descobertas importantes para a humanidade.
Mas essa metamorfose real da força da libido faz parte de uma outra conversa: aqui entram fatores diversificados e difíceis de precisar, porque têm origens variadas. Um deles é com certeza um traço que diz respeito à educação, que muitas vezes não coincide com o conceito do senso comum.